RESUMO: A interpretação das relações jurídicas de trato sucessivo, especialmente no contexto das decisões judiciais que envolvem servidores públicos, tem gerado intenso debate, sobretudo no que se refere à eficácia das sentenças, à coisa julgada e às modificações legislativas que impactam tais relações. Este artigo visa analisar a aplicação da cláusula rebus sic stantibus nas relações jurídicas de trato sucessivo, com especial ênfase na questão da incorporação de quintos aos vencimentos de servidores públicos, à luz das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF).
Palavras-chave: Cláusula rebus sic stantibus, relações jurídicas de trato sucessivo, coisa julgada, incorporação de quintos, STF.
1.INTRODUÇÃO
A interpretação das relações jurídicas de trato sucessivo, particularmente no contexto das decisões judiciais que envolvem servidores públicos, tem sido um tema central nas discussões sobre a eficácia das decisões, a coisa julgada e as modificações legislativas que impactam essas relações. Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se debruçado sobre diversos casos que envolvem a aplicação de decisões em situações dinâmicas e de continuidade, nas quais os pressupostos fáticos e jurídicos podem se alterar ao longo do tempo, afetando a execução das sentenças. Esse cenário é particularmente relevante nas questões que envolvem a incorporação de quintos e gratificações, como no caso de servidores que ocupam funções comissionadas.
Este artigo visa analisar a aplicação da cláusula rebus sic stantibus em relações jurídicas de trato sucessivo, com especial ênfase nos casos de incorporação de quintos por servidores públicos, à luz das recentes decisões do STF, especialmente no que tange à suspensão de efeitos de decisões transitadas em julgado diante de alteração dos pressupostos fáticos e jurídicos.
2.A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS E A EFICÁCIA DAS SENTENÇAS EM RELAÇÕES JURÍDICAS DE TRATO SUCESSIVO
A cláusula rebus sic stantibus, originária do direito internacional e posteriormente incorporada ao direito interno, trata da ideia de que os acordos ou decisões judiciais sobre situações dinâmicas podem ter sua eficácia modificada caso ocorram mudanças substanciais nos pressupostos fáticos ou jurídicos que as fundamentaram. Essa cláusula tem sido aplicada, por exemplo, em decisões relacionadas a vínculos de trato sucessivo, como os contratos administrativos ou as relações entre servidores públicos e a administração pública.
O Supremo Tribunal Federal consolidou a aplicação dessa cláusula em decisões que tratam de vínculos de trato continuado, como os casos de servidores públicos. Em seu entendimento, a eficácia de decisões judiciais que reconhecem direitos em tais relações jurídicas persiste enquanto os pressupostos fáticos e jurídicos que a sustentam não forem alterados. Caso haja uma modificação substancial desses pressupostos, a eficácia da sentença pode ser cessada sem necessidade de ação rescisória, como reafirmado em diversos julgados do STF.
Por exemplo, no caso do Ag. Reg. em Mandado de Segurança 32.435 DF, o STF destacou que a perda de eficácia vinculante da decisão judicial se dá pela alteração superveniente dos pressupostos fáticos e jurídicos que deram suporte à sentença. A superveniente alteração dos pressupostos, portanto, gera a necessidade de revisão da eficácia da sentença, sem que isso implique em ofensa à coisa julgada.
A propósito, vale referir que a interpretação consignada acima já havia sido conferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do tema 494 de repercussão geral, cuja ementa do leading case retrata, in verbis:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA AFIRMANDO DIREITO À DIFERENÇA DE PERCENTUAL REMUNERATÓRIO, INCLUSIVE PARA O FUTURO. RELAÇÃO JURÍDICA DE TRATO CONTINUADO. EFICÁCIA TEMPORAL. CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. SUPERVENIENTE INCORPORAÇÃO DEFINITIVA NOS VENCIMENTOS POR FORÇA DE DISSÍDIO COLETIVO. EXAURIMENTO DA EFICÁCIA DA SENTENÇA.
1. A força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial. A superveniente alteração de qualquer desses pressupostos (a) determina a imediata cessação da eficácia executiva do julgado, independentemente de ação rescisória ou, salvo em estritas hipóteses previstas em lei, de ação revisional, razão pela qual (b) a matéria pode ser alegada como matéria de defesa em impugnação ou em embargos do executado.
2. Afirma-se, nessa linha de entendimento, que a sentença que reconhece ao trabalhador ou servidor o direito a determinado percentual de acréscimo remuneratório deixa de ter eficácia a partir da superveniente incorporação definitiva do referido percentual nos seus ganhos.
3. Recurso extraordinário improvido.
Mais recentemente, no julgamento do tema de repercussão geral n° 885[1], em 2023, o Supremo Tribunal Federal reiterou o referido entendimento, sedimentando que “nas obrigações de trato sucessivo, a força vinculante da decisão, mesmo que transitada em julgado, somente permanece enquanto se mantiverem inalterados os seus pressupostos fáticos e jurídicos (RE 596.663, Red. p/ o acórdão Min. Teori Zavascki, j. em 24.09.2014)”. Aliás, consta expressamente da tese aprovada em 2023[2], que as decisões proferidas em ação direta, interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas relações jurídicas de caráter continuado.
Ademais, vale referir que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal analisou questão atinente à interpretação de dispositivo legal consolidado em súmula vinculante, que, segundo a Lei n° 11.417/06, apenas pode ser editada após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (art. 2°).
No tema n° 477 de Repercussão Geral restou consolidado que “em regra, deve-se revisar ou cancelar enunciado de súmula vinculante quando ocorrer a revogação ou a alteração da legislação que lhe serviu de fundamento” (STF. Plenário. RE 1.116.485/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 01/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 477) (Info 1084)).
Deveras, afere-se a existência de previsão implícita da cláusula rebus sic stantibus no art. 5° da Lei n° 11.417/16, que prevê “revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso”.
Mutatis mutandis, a mesma lógica jurídica deve ser aplicada ao caso em que prevê a decisão judicial não transitada em julgado baseada em dispositivo legal revogado. Se a regra constitui na alteração da própria súmula vinculante por fundamento de validade legal, como mais razão incide em decisão judicial proferida sem tal força vinculante.
É dizer, alterado o pressuposto jurídico a comportar a decisão judicial proferida secundum legem, há imediata cessação da eficácia executiva do julgado, independentemente de ação rescisória ou de ação revisional, nos termos preconizados pelo STF.
3.A INCORPORAÇÃO DE QUINTOS NO PERÍODO DE 1998 A 2001
No que tange à incorporação de quintos e gratificações para servidores públicos, o STF tem enfrentado uma importante controvérsia sobre a legalidade da incorporação de valores referentes a funções comissionadas exercidas entre 1998 e 2001. O debate se concentrou na constitucionalidade da Medida Provisória nº 2.225-45/2001 e seus efeitos sobre os servidores públicos que haviam incorporado essas gratificações.
Os servidores públicos federais, quando desempenhavam funções gratificadas tinham direito de incorporar, em sua remuneração, a vantagem decorrente do cargo em comissão ou da função de direção, chefia e assessoramento. Isso foi previsto na redação original do art. 62 da Lei nº 8.112/90:
Art. 62. Ao servidor investido em função de direção, chefia ou assessoramento é devida uma gratificação pelo seu exercício.
(...)
§ 2º A gratificação prevista neste artigo incorpora-se à remuneração do servidor e integra o provento da aposentadoria, na proporção de 1/5 (um quinto) por ano de exercício na função de direção, chefia ou assessoramento, até o limite de 5 (cinco) quintos. (obs: essa redação não está mais em vigor) (...)
Assim, esses quintos passavam a integrar a remuneração e depois a aposentadoria do servidor. Isso ficou conhecido como incorporação de quintos em razão do exercício de funções gratificadas.
A MP 1.595-14, de 10 de novembro de 1997, posteriormente convertida na Lei nº 9.527/97, extinguiu a possibilidade de incorporação dos “quintos”. Em 2001, foi editada a Medida Provisória 2.225-45, que acrescentou na Lei nº 8.112/90 o art. 62-A, com a seguinte redação:
Art. 62-A. Fica transformada em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada - VPNI a incorporação da retribuição pelo exercício de função de direção, chefia ou assessoramento, cargo de provimento em comissão ou de Natureza Especial a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei nº 8.911, de 11 de julho de 1994, e o art. 3º da Lei nº 9.624, de 2 de abril de 1998.
Parágrafo único. A VPNI de que trata o caput deste artigo somente estará sujeita às revisões gerais de remuneração dos servidores públicos federais.
Com base nesse art. 62-A, os servidores públicos passaram a alegar que a incorporação dos quintos voltou a existir (voltou a ser possível) no período mencionado pelo dispositivo, ou seja, entra a data da Lei nº 9.624/98 (08/04/1998) até o dia da MP 2.225/45 (04/09/2001).
Houve várias ações judiciais discutindo o tema e a jurisprudência do STJ era favorável aos servidores:
(...) 5. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que “a Medida Provisória n.º 2.225-45/2001, com a revogação dos artigos 3º e 10 da Lei n.º 8.911/94, autorizou a incorporação da gratificação relativa ao exercício de função comissionada no período de 8/4/1998 a 4/9/2001, transformando tais parcelas, desde logo, em VPNI - Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada.” (RMS 21960 / DF, rel. Min. Félix Fischer, Quinta Turma, DJ 07/02/2008). (...)
STJ. 1ª Seção. REsp 1261020/CE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 24/10/2012.
Em razão disso, muitos servidores obtiveram decisões favoráveis que transitaram em julgado. Além disso, administrativamente, diversos órgãos e entidades da administração pública federal concederam a incorporação aos servidores.
O entendimento firmado pelo STF, em julgamento do RE 638.115, foi no sentido de que a incorporação dos quintos durante o período entre 8 de abril de 1998 e 4 de setembro de 2001, com base na Lei nº 9.624/98, era inconstitucional, uma vez que não havia respaldo legal para tal medida. A tese nº 395 de Repercussão Geral do STF foi clara ao afirmar que "ofende o princípio da legalidade a decisão que concede a incorporação de quintos pelo exercício de função comissionada no período de 8/4/1998 até 4/9/2001, ante a carência de fundamento legal".
Na oportunidade, afirmou o Min. Gilmar Mendes:
“Como se pode perceber, o art. 3º da MP 2.225-45, de 2001, apenas transformou em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada – VPNI a incorporação das parcelas a que se referem os arts. 3º e 10 da Lei 8.911, de 11 de julho de 1994, e o art. 3º da Lei 9.624, de 2 de abril de 1998. O texto é claro. Não há como considerar, a menos que se queira ir de encontro à expressa determinação legal, que o citado artigo tenha restabelecido ou reinstituído a possibilidade de incorporação das parcelas de quintos ou décimos.
(...)
Em conclusão, não há no ordenamento jurídico norma que permita essa “ressurreição” dos quintos/décimos levada a efeito pela decisão recorrida.”
Deveras, ao reconhecer a inconstitucionalidade da incorporação dos quintos, o Supremo Tribunal Federal determinou, em 2017, que o pagamento dessas verbas fosse cessado, ainda que com efeitos temporais modulados. O Tribunal, ao julgar os embargos de declaração no RE 638.115, garantiu que, no caso de servidores que haviam incorporado os quintos por decisão judicial transitada em julgado, esses valores não seriam cessados imediatamente, mas absorvidos por reajustes futuros, a partir da modulação dos efeitos da decisão. Essa modulação foi necessária para respeitar a boa-fé dos servidores que, ao longo dos anos, receberam essas verbas com base em decisões judiciais favoráveis.
4.A INTERSEÇÃO ENTRE A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS E A COISA JULGADA
A aplicação da cláusula rebus sic stantibus nas relações jurídicas de trato sucessivo envolve um delicado equilíbrio entre a segurança jurídica proporcionada pela coisa julgada e a necessidade de atualização das decisões judiciais diante de novos contextos fáticos e legais. Em muitos casos, o STF tem entendido que, quando os pressupostos fáticos e jurídicos que fundamentaram uma decisão judicial são modificados, não há ofensa à coisa julgada ao cessar a eficácia de uma sentença. Este entendimento foi adotado nos julgados sobre a incorporação de quintos, onde a decisão judicial que determinava o pagamento das verbas foi desconstituída, considerando-se a mudança no contexto legislativo.
A decisão do STF no RE 638.115, ao estabelecer que a incorporação de quintos era inconstitucional, é um exemplo claro de como a modulação dos efeitos da decisão e a aplicação da cláusula rebus sic stantibus podem coexistir, permitindo que os direitos reconhecidos anteriormente sejam absorvidos ou ajustados de acordo com a alteração do quadro jurídico e fático.
5. CONCLUSÃO
A aplicação da cláusula rebus sic stantibus em relações jurídicas de trato sucessivo, como no caso dos vínculos entre servidores públicos e o Estado, tem se mostrado fundamental para garantir a flexibilidade e a adaptação das decisões judiciais às transformações legislativas e fáticas que impactam essas relações. O Supremo Tribunal Federal tem seguido esse entendimento, especialmente ao tratar da inconstitucionalidade da incorporação de quintos, modulando os efeitos das decisões para respeitar a boa-fé dos servidores enquanto, ao mesmo tempo, preserva a legalidade e a conformidade com o ordenamento jurídico vigente.
A análise das decisões do STF, em especial no contexto das ações que envolvem a incorporação de quintos, demonstra que a coisa julgada não é um obstáculo absoluto quando há alteração substancial nos pressupostos fáticos e jurídicos que fundamentaram a sentença. Ao contrário, a jurisprudência atual tem procurado equilibrar a segurança jurídica com a necessidade de revisão de direitos em função de novos marcos normativos, respeitando os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e da eficiência na Administração Pública.
6.REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1990.
BRASIL. Medida Provisória nº 2.225-45, de 4 de setembro de 2001. Dispõe sobre a transformação em Vantagem Pessoal Nominalmente Identificada (VPNI) das parcelas incorporadas ao servidor público. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2001.
STF. Recurso Extraordinário nº 638.115, de 2017. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 22 dez. 2024.
STJ. Recurso Especial nº 1261020/CE, de 24 de outubro de 2012. Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em: 22 dez. 2024.
[1] As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo". Disponível em Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br).
[2] Disponível em downloadPeca.asp (stf.jus.br)
Especialista em Direito Público. Servidor público federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, DAYVISSON CRISTIANO. A aplicação da cláusula rebus sic stantibus nas relações jurídicas de trato sucessivo: reflexos sobre a coisa julgada e a incorporação de quintos no serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /67412/a-aplicao-da-clusula-rebus-sic-stantibus-nas-relaes-jurdicas-de-trato-sucessivo-reflexos-sobre-a-coisa-julgada-e-a-incorporao-de-quintos-no-servio-pblico. Acesso em: 28 dez 2024.
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